THE THING I AM


Já esqueci o meu nome. Não sou Borges

(Ele morreu em La Verde, frente às balas)

Nem Acevedo, sonhando batalhas,

Nem meu pai, inclinado sobre o livro

Ou aceitando a morte na manhã,

Nem Haslam, decifrando alguns versículos

Das Escrituras, longe de Nortúmbria,

Nem Suárez, da carga com as lanças.

Já mal serei a sombra que projectam

Essas íntimas sombras intrincadas.

Sou a sua memória, mas sou o outro.

Que esteve, como Dante e como todos

Os homens, no mais raro Paraíso

E nos muitos Infernos necessários.

Sou a carne e a cara que não vejo.

Sou no final do dia o resignado

Que dispõe de maneira algo diferente

As vozes que há na língua castelhana

Para narrar as fábulas que esgotam

Tudo isso a que se chama a literatura.

Sou o que folheava enciclopédias,

O estudante tardio de brancas têmporas

Ou grisalhas, o preso dessa casa

Cheia de livros que não têm letras,

Onde a penumbra esconde um temeroso

Hexâmetro aprendido junto ao Ródano,

Aquele que quer salvar o orbe que foge

Do fogo e dessas águas que há na Ira

Com um pouco de Fedro e de Virgílio.

Assalta-me o passado com imagens.

Sou a memória abrupta da esfera

De Magdeburgo, de duas letras rúnicas

Ou de um dístico de Angelus Silesius.

Sou o que não conhece outro consolo

Salvo o de recordar o feliz tempo.

Sou por vezes a sorte imerecida.

Sou o que sabe que é apenas eco,

Esse que quer morrer inteiramente.

Talvez eu seja aquele que és nos sonhos.

Sou a coisa que sou. Já disse Shakespeare.

Sou o que sobrevive hoje aos cobardes

E aos fátuos que existiram.
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(a itálico, o extracto publicado aqui)
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